Em todo o mundo, ativistas estão lutando para proteger seus rios, dando-lhes personalidade jurídica. Isso é apenas simbolismo ou pode gerar mudanças ambientais duradouras?
Neste artigo da série Outros Rios, o InfoSãoFrancisco apresenta aos leitores atualização sobre o crescente movimento mundial que confere aos rios (e demais elementos da natureza) a personalidade jurídica.
Por quase 320 quilômetros, o rio Magpie serpenteia majestosamente pelas florestas do Quebec. Sua magnífica faixa azul é apreciada por canoístas, caiaques de corredeiras e pelo povo nativo Innu de Ekuanitshit. No início deste ano, pela primeira vez no Canadá, autoridades locais concederam ao rio personalidade jurídica com nove direitos, incluindo o direito de fluir, o direito da proteção contra poluição – e o direito de processar [juridicamente].
Uapukun Mestokosho, membro da comunidade nativa Innu que fez campanha pelo reconhecimento dos direitos do rio, disse que passar um tempo no rio era “uma forma de cura” para os povos indígenas, que assim poderiam reviver suas práticas tradicionais baseadas na terra. Práticas que haviam sido abandonadas durante a violência da era colonial.
“As pessoas estão sofrendo muito, com traumas intergeracionais vinculados ao passado”, disse Mestokosho ao CBC. Além desse benefício para as pessoas, ela disse que seus ancestrais sempre protegeram o Magpie, conhecido no passado como Muteshekau-shipu, e que o reconhecimento de seus direitos ajudaria a protegê-lo para as gerações futuras.
O Magpie é um dentre o cada vez maior número de rios a ser reconhecido como uma entidade viva em todo o mundo. O crescente movimento pelos direitos da natureza vem pressionando as autoridades locais, nacionais e internacionais a reconhecerem as características naturais – de lagos a montanhas – na forma da lei, dando-lhes tanto personalidade jurídica ou o direito independente de florescer.
Dar aos rios o status de pessoas – ou mais – em tribunais é algo que está estimulando o ambientalismo em todo o mundo. O Equador deu início ao movimento consagrando os direitos da natureza em sua constituição em 2008. Países como Bolívia, México e Colômbia criaram mecanismos legais comparáveis ??para proteger a natureza, enquanto a Nova Zelândia, Austrália e Bangladesh agiram para proteger os rios. Nos Estados Unidos, os moradores de Toledo redigiram uma declaração de direitos para o Lago Erie. Mas, poderiam os direitos legais da natureza protegê-la na realidade? Quem decide quando um rio pode processar [juridicamente]? Isso diminuiria o poder da natureza de inseri-la no sistema jurídico ocidental? Ou será que os direitos da natureza desafiam os próprios fundamentos do capitalismo?
Pensadores jurídicos ocidentais começaram a investigar a suposição predominante do Iluminismo, ainda em 1972, onde os objetos naturais eram simplesmente propriedade a ser explorada, quando um jovem professor de filosofia jurídica, Christopher Stone, argumentou que o meio ambiente deveria ser considerado como um sujeito e a ele caberia personalidade jurídica – como concedido às empresas , por exemplo – com tutores humanos capazes de buscar reparação legal se um recurso natural fosse danificado ou destruído.
O atual movimento tem início em 2017 quando, na Nova Zelândia, uma lei do parlamento concedeu a todo o rio Whanganui direitos como uma entidade independente, considerando-o um todo indivisível da nascente ao mar. Tal ação foi parte do tratado entre o governo e o povo Maori e guardiões foram nomeados para agir e falar em nome do rio garantindo seus direitos.
Mas afinal, o que é um rio? A maioria das pessoas não consideraria suas margens, mas sua água corrente. Infelizmente, o “elefante na sala”, como diz a Dra. Erin O’Donnell da Universidade de Melbourne e autora de um livro sobre os direitos dos rios, é o fato de que nenhum dos rios hoje legalmente reconhecidos como seres vivos ou pessoas jurídicas ter realmente direitos à água que flui em suas margens. “Há cada vez mais uma tentativa de dar aos rios o direito de fluir e, portanto, o Rio Magpie no Canadá tem o direito de fluir, mas como você impõe esse direito é muito incerto”, disse O’Donnell. “E se isso não está realmente embutido na lei da água, o que ainda não está, então provavelmente não vale o papel em que tal está escrito.”
Na Nova Zelândia, o tratado do Whanganui não abordou essa questão fundamental, onde até hoje uma empresa continua a desviar 80% do fluxo do rio para energia hidrelétrica até que sua licença expire em 2039. Se esse fato faz com que os direitos sobre os rios aparentem ser um simbolismo sem poder , O’Donnell e outros argumentam que o conceito ainda possui um real poder transformador. No Canadá, David Boyd, professor de direito e Relator Especial da ONU sobre Direitos Humanos e Meio Ambiente, disse que a pessoa jurídica poderia ter sucesso onde décadas de leis ambientais falharam, dando início a uma mudança cultural longe de conceber a natureza como um “armazém de mercadorias para uso humano ”.
Na Austrália, essa mudança está ocorrendo em relação ao rio Yarra, acredita O’Donnell. O Yarra foi reconhecido como uma entidade viva e integrada, pois seus proprietários tradicionais, o povo Wurundjeri, sempre o conheceram como tal, conforme uma lei estadual de 2017. Porém, ao contrário do Lago Erie e outros locais na América do Norte, o Yarra não foi considerado como pessoa jurídica. “A vantagem de ter personalidade jurídica é que você tem poderes jurídicos extras, então um rio que é uma pessoa jurídica pode ir a tribunal. A desvantagem é que você imediatamente concentra a atenção das pessoas nesses direitos e poderes e espera que o rio comece a usá-los ”, diz O’Donnell. “Uma das primeiras perguntas que recebo quase todas as vezes que falo publicamente sobre a questão dos rios terem direitos é: ‘Podemos processar o rio quando ele inunda?’” Assim que o Lago Erie obteve direitos nos Estados Unidos, fazendeiros – preocupados com o fato de que medidas para impedir que fertilizantes caiam no lago ameacem seus negócios – contestaram no tribunal.
Ter o Yarra reconhecido como uma entidade viva aparenta ser um passo mais fraco do que a personalidade jurídica, mas ainda tem “o potencial mais transformador na forma como as pessoas se relacionam com o rio”, argumenta O’Donnell. Até muito recentemente, o rio era um recurso a ser explorado: uma fonte de água, uma drenagem de águas pluviais e um esgoto. “Ao ver o rio como um ser vivo, é aí que começamos a dizer, espere, o que queremos para ele? Essa é a mudança genuína na discussão que estou vendo com o Yarra, afastando-se do modelo ocidental de extração de recursos e buscando uma parceria com o rio em seu próprio gerenciamento.”
Porém, alguns céticos dos direitos da natureza argumentam que isso simplesmente não pode se enquadrar na lei ocidental, que defende o capitalismo, os direitos de propriedade e a extração de lucro dos recursos da Terra. Após o Equador ter incorporado os direitos da natureza em sua constituição, em 2011 um tribunal provincial decidiu a favor do rio Vilcabamba contra a construção de estradas. O rio venceu no tribunal, mas o órgão desenvolvedor não tomou as medidas necessárias para remediar a poluição. Desde então, os tribunais do Equador já realizaram mais de três dezenas de ações judiciais em nome da natureza. Muitos foram bem-sucedidos, mas nem sempre os veredictos foram executados na prática.
Na Índia, uma alta corte estadual tentou dar aos rios Ganges e Yamuna a personalidade jurídica em 2017, mas a decisão foi apelada para a suprema corte. Os ativistas ainda estão esperando pelo veredicto enquanto os rios continuam a ser poluídos e explorados.
por Patrick Barkham – The Guardian
Fonte: https://infosaofrancisco.canoadetolda.org.br/artigos/outros-rios/rios-deveriam-ter-direitos-semelhantes-aos-das-pessoas/?fbclid=IwAR1P9kefAKCrWqf04Yjmo2vLll1dnoGNbqFNgPmNUCvBBWfeuKDx5j5YMhA
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